O trabalho é o foco central das reflexões de André Gorz. Ele vem acompanhando de perto as principais transformações que o trabalho vem sofrendo especialmente no último quartel do século XX. Gorz é um daqueles homens que aprendeu a transitar em diversas áreas do pensamento social (sociologia, filosofia, economia), o que lhe dá uma visão abrangente dos acontecimentos. Não se contenta com seguir caminhos já trilhados. Quando o faz é no sentido de caminhar para além, abrir novos atalhos, jogar novas luzes sobre temas antigos e novos, sempre para realizar aquilo que chama de “buscas de sentido”. Ou seja, não basta analisar a realidade, mas faz-se necessário realizar buscas de sentido para compreender a ação humana em cada momento da história.
Gorz debruça-se sobre a problemática do desemprego, o alcance da precarização do mundo do trabalho, a introdução e o impacto das novas tecnologias sobre a produção, bem como sobre a reorganização e a posição dos trabalhadores em relação aos empregos existentes.
Na compreensão de Gorz, o trabalho está inserido num sistema mais amplo, mais abrangente, a partir do qual se deve entender suas “metamorfoses”. O trabalho, tal como o entendemos hoje, deve sua natureza, suas funções e seus modos de organização, ao capitalismo. Não é possível pensar as transformações pelas quais está passando o trabalho, sem ter presente as dinâmicas do capitalismo e as características que este assume para manter, em tempos de mundialização (globalização para muitos), o controle sobre os trabalhadores.
O capitalismo passou a compreender o trabalho como emprego e a valorizar mais a este do que à quele (capítulo II). No entanto, no afã de acumular e de manter ou mesmo de aumentar os lucros, recorre à “revolução tecnológica” para cortar custos e, portanto, economizar trabalho vivo. Esta “racionalidade econômica” acaba por instaurar uma crise da sociedade do trabalho e que induz a uma crise da sociedade salarial.
1.1 A revolução tecnológica
Em 1983, em “Les chemins du Paradis”, Gorz chama a atenção para o fato de que a crise de crescimento que os países do Primeiro Mundo atravessavam não era uma crise passageira. Ela era o esgotamento do modelo de desenvolvimento baseado no crescimento infinito e na extensão das relações mercantis. Nem o industrialismo capitalista, nem o socialista “podem ser estendidos em escala planetária, por serem destruidores dos recursos naturais limitados e dos equilíbrios necessários para a continuação da vida”[1]. E isso nem os teóricos da direita nem os intelectuais da esquerda estavam compreendendo. Obcecados pelo crescimento econômico não se dão conta da profundidade e da natureza da crise em andamento. Na realidade, segundo Gorz, são dois séculos de história que estão sendo rompidos. Portanto, há algo de magnitude apenas “comparável à primeira revolução industrial” [2] em vias de tomar forma. Gorz estava se referindo à revolução micro-eletrônica.
A mundialização do capital é “favorecida pela revolução tecnológica”[3]. Ou seja, a globalização tal como se processa neste momento da história é tributária da revolução tecnológica surgida, sobretudo, na década de 1970. Sem os notáveis avanços nas áreas da micro-eletrônica, da automação, da computação, das comunicações, as grandes empresas transnacionais não poderiam ter feito o que fizeram. Ao mesmo tempo é preciso compreender o seu alcance para a organização e a natureza do trabalho.
Na origem desta revolução está a chamada “informação”. A informação não deve ser reduzida ao desenvolvimento tecnológico de comunicações, como a Internet ou a televisão, portanto, aos meios. A informação é também conteúdo, pois ela pode ser registrada, arquivada, calculada (‘computada’) em máquinas e artefatos que se tornam ‘informatizados’ e não automatizados, como se diz freqüentemente[4].
O último quartel do século XX foi testemunha de um amplo processo de automação ocorrido nas fábricas. A automação vem a ser algo qualitativamente diferente da simples mecanização. Por mecanização entende-se o trabalho físico realizado pelo homem por meio de uma máquina. Já a automação ocorre “quando a máquina realiza o trabalho humano, controlando as suas próprias operações e corrigindo os seus próprios erros”. Ou seja, a automação consiste “na substituição dos órgãos humanos de esforço, de memória e de decisão por órgãos tecnológicos”[5].
A revolução tecnológica, na perspectiva de Gorz, é fundamental para que hoje possamos falar em mundialização.
A mundialização não teria podido se desenvolver, nem sequer considerar-se, na ausência do potencial, em grande parte não explorado até esse momento, das ‘tecnologias da informação’. Se cada grande grupo não tivesse esperado obter uma participação suplementar no mercado mundial, tirando melhor e mais rápido proveito que os outros das possibilidades latentes que a revolução informática oferecia, é verossímil pensar que teria prevalecido a tendência à cartelização e a uma repartição do mundo por acordos de cartel [...].[6]
Gorz mostra como a revolução tecnológica foi vital para os interesses do capital. Este se apropria daquela para alavancar a continuidade e a exacerbação da concentração das riquezas e do poder[7]. Ou seja, a revolução tecnológica atende aos dinamismos do capitalismo[8].
1.1.1 Natureza da Revolução
Gorz é partidário daquele grupo de pensadores que - como Jacques Robin, Roger Sue, entre outros - acreditam que com as transformações tecnológicas em andamento não estamos entrando propriamente numa terceira revolução industrial. Antes, por suas características, seu impacto sobre o sistema produtivo, sobre a organização do trabalho e sobre a própria sociedade, convém que seja concebida como uma verdadeira “revolução”. Para ele, a robótica na indústria “possibilita uma economia ao mesmo tempo dos investimentos (capital constante fixo), da mão-de-obra (capital variável) e das matérias-primas. Esta é a radical novidade. Ela justifica plenamente a expressão ‘revolução micro-eletrônica’”[9]. É esta nova natureza da revolução que convém seja apreendida e compreendida para que se tenha uma correta visão da realidade e do rumo que os acontecimentos podem tomar, ou efetivamente estão tomando.
A revolução realça o aspecto da ruptura, da descontinuidade, do intervalo, ainda que as mudanças paradigmáticas não sejam vistas a olho nu no curto período de tempo[10]. Uma linha de pensamento - Gorz, Castells, Beaud, Neutzling, Pereira da Silva, para citar alguns - põe-se de acordo em que no final do século XX estamos vivendo uma dessas rupturas, isto é, que estamos presenciando uma revolução tecnológica e não simplesmente uma Terceira Revolução Industrial.
Qualquer revolução implica numa mudança de relações com a natureza e com os outros. Marx já havia chamado a atenção para o significado daquilo que estava ocorrendo na sua época e que teve a burguesia como elemento propulsor. Ela teve um papel extremamente revolucionário, afirma Marx.[11]
As transformações operadas afetam profundamente a produção, as condições sociais e culturais. Foi Polanyi, posteriormente, que pôs em evidência o alcance e a profundidade da revolução que culmina com a colocação no centro da sociedade do mercado e com ele da economia. A economia, de periférica que era, passa a ocupar o lugar de destaque nas sociedades modernas de mercado. Essa transformação altera os alicerces sociais, culturais e econômicos[12].
Assim, o que estamos vivendo no final do século XX, leva-nos a crer que se trata de uma revolução no sentido de que “um grande aumento repentino e inesperado de aplicações tecnológicas transformou os processos de produção e distribuição, criou uma enxurrada de novos produtos e mudou de maneira decisiva a localização das riquezas e do poder no mundo”[13].
As mudanças que se dão ao nível da produção, no chão da fábrica, entranham uma mutação cultural igualmente cheia de conseqüências. Duas delas são as mais importantes. A primeira é que “o tempo de trabalho não poderá mais ser a medida do valor de troca, nem o valor de troca a medida do valor econômico”[14]. A segunda é que “o salário não poderá mais ser função da quantidade de trabalho, nem o direito a uma renda ser subordinado à ocupação de um emprego”[15].
Essa “revolução” tem profundas conseqüências econômicas e sociais, pois significa que hoje se pode produzir mais em menos tempo[16], com menos trabalho[17], ao mesmo tempo em que se caminha para a desmaterialização dos produtos e do próprio trabalho.
A revolução da micro-eletrônica inaugura, portanto, a “era da abolição do trabalho”. E essa abolição deve ser compreendida num duplo sentido:
a) a quantidade de trabalho necessário decresce rapidamente até tornar-se marginal na maior parte das produções materiais e das atividades de organização; b) o trabalho não implica mais um face-a-face do trabalhador com a matéria. A transformação dessa última não resulta mais de uma atividade imediata completa e soberana.[18]
Segundo Méda, a riqueza é cada vez mais o produto de um conjunto de interações complexas entre os capitais, os sistemas de informação, o trabalho ‘das máquinas’ e o trabalho humano, no qual o trabalho humano não é o único produtor de riqueza. O trabalho humano é hoje tão imbricado no conjunto de máquinas e sistemas que a eficácia dessas não pode ser distinguida da sua.[19]
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